Aos que asseguram que as mazelas africanas decorrem do colonialismo europeu alegando o “peso das instituições” caberia a pergunta: quais instituições, cara-pálida? A da escravidão, praticada muito antes dos europeus aportarem por lá?
Isto soa como aquele batido argumento de que o subdesenvolvimento brasileiro é conseqüência da colonização portuguesa. Ora! Séculos se passara e os portugueses já estão ‘noutra’... E mesmo o Brasil, que teve uma colonização muito mais duradoura que as colônias portuguesas na África já pôde auferir os frutos de um desenvolvimento ancorado por uma economia muito mais diversificada que todo aquele continente. Logo se vê que o argumento do “legado colonialista”, em grande medida, não passa de um sofisma barato.
Os estigmas da divisão, do ódio e da auto-exclusão não são legados europeus, mas produtos endógenos da própria cultura política gerada pelos africanos. Tal é o caso de um país, dentre tantos outros, a Costa do Marfim.
Atualmente, aquele país é um mosaico de 61 tribos de povos imigrados de países vizinhos (Burkina Faso, Mali, Gana, Guiné-Bissau etc.) que viviam, se não em harmonia, pelo menos com certo grau de tolerância. Soma-se a eles, cerca de ¼ do contingente total provenientes de outras regiões africanas. Como a maioria corresponde a região saheliana – a mais pobre do mundo – não é de estranhar que continuem migrando para um país pobre, mas relativamente melhor do que as regiões vizinhas. Consequentemente, um dos motivadores dos conflitos etno-tribais está na situação do ‘estrangeiro’, sem perspectivas de obter a nacionalidade marfiniana e, portanto, sem direitos de qualquer espécie.
Não é a toa que a Costa do Marfim atraia tanta gente... Até pouco tempo atrás, era uma referência aos povos vizinhos com sua estabilidade econômica, política e social. Grande parte disto se deve atribuir ao carismático ex-presidente da república Félix Houphouet Boigny, tido como o “velho sábio” quem soube integrar todas as tribos nacionais.
Se o retorno ao tribalismo vigente tivesse alguma correspondência com a Europa, particularmente a dominação francesa que se encerrou em 1960, ele viria logo após a emancipação política do país. E não a partir de 1993, com o falecimento do estimado líder. A crise econômica também veio a partir daí, quanto mais se distanciava do período colonial. E o legado tribalista, com conflitos entre autóctones e alógenos: pescadores do sul com criadores de gado ao norte, cacaueiros a oeste, comerciantes no centro e gangues na capital.
Na tentativa de estabilizar o país, em 1999 foi dado um golpe militar que trouxe um general reformado ao poder. Este logo organizou eleições e entregou o poder aos civis. Quando se pensou que teríamos a estabilização política, em 2002, um grupo de 800 rebeldes tomou a cidade de Bouaké e, desde então temos uma guerra civil.
Um dos presidentes que sucederam ao “velho sábio”, Henri Konan Bedié introduziu o neologismo de ‘marfinidade’, ou seja, apelou para o nacionalismo que destituiu o mérito e lugar do mosaico de tribos. O tênue equilíbrio dos diversos povos foi ameaçado e, como se não bastasse, a assembléia legislativa aprovou o novo código eleitoral (após um plebiscito condicionado) onde se assegurava que para um cidadão ser candidato à presidência tinha que ser filho de pai e mãe marfinianos. Ou seja, a base dos atuais conflitos no país foi criado pelos próprios africanos com seu nacionalismo anacrônico.
Candidatos como Alassane Dramane Outtara, filho de pai ‘marfiniano’, mas de mãe burkinabé foram excluídos de qualquer tentativa de serem eleitos. Consequentemente, os protestos tomaram corpo. Como se não bastasse, o argumento religioso tomou corpo, pelo fato de que Alassane fosse muçulmano. Hoje é acusado de autoria de tentar um golpe de estado, com apoio de tribos do norte e do centro do país, assim como dos governos de países limítrofes e outros mais ao norte, como a Líbia e outros, mais distantes, como a Arábia Saudita. Se for verdade, outro elemento entra no jogo geopolítico, um “imperialismo árabe” na região com seu conflito secular contra os karfirs (infiéis).
Hoje, a Costa do Marfim está dividida em duas porções nitidamente polarizadas. O sul e o centro-leste (cristãos) com um governo legitimamente eleito, e o norte e o centro-oeste (islâmico) com a população rebelde. Se for justo alegar a pretérita influência européia na religião, não se pode deixar de lado o avanço muçulmano com apoio externo recente e atuante. A Europa, ao contrário dos que a acusam injustamente, até tenta colaborar para o cessar-fogo, como o acordo assinado em Paris para aplacar a guerra entre as diversas regiões e suas populações. No entanto, os militantes do partido dos rebeldes e os militares fiéis ao partido governista não o acataram. A paz acabaria por lesá-los de alguma forma diminuindo seu poder. Detalhe: o acordo determinava que os ministérios da defesa e do interior seriam atribuídos aos rebeldes.
Só um completo tolo pode atribuir uma “relação institucional” ao drama africano esquecendo-se (talvez por conveniência) que a principal se dá com a estrutura tribal da maioria dos países do continente. A guerra tribal e flagrantemente genocida em Ruanda e Burundi a partir de 1994 atesta isto. Cabe lembrar as palavras do “velho sábio” na Costa do Marfim que, nos anos 80 com o advento da democracia, vaticinava “cada tribo deve fundar o seu partido político”. Ou seja, a democracia rejeitada pelos próprios governos e movimentos subseqüentes seria a única solução possível. Acaso as instituições européias, como é a própria democracia, fossem acatadas não teríamos o absurdo que se assomou naquelas plagas a partir dos anos 90.
As tribos são o problema, mas podem ser administradas compondo um tipo de solução. Antes dos golpes em 1999 e em 2002, mais de 40 partidos foram inscritos no país, como resultado da proposta anterior de estabilização e desenvolvimento institucional (sim, instituições, para desagrado de mentes fatalistas não só mudam como podem ser criadas). A aliança entre os membros de uma mesma tribo ou entre tribos vizinhas consiste numa estratégia de sobrevivência das mesmas. É normal que se tratem por ‘irmãos’ ou ‘irmãs’ entre si, mesmo sem ter relações de parentesco, tamanha é sua ligação. O problema é o que mesmo conceito não foi estendido aos residentes de outras tribos fora da composição governamental e, muito menos, com os imigrantes e seus descendentes.