José Eli da Veiga
Se você quiser fundamentar opinião sobre o aquecimento global, não poderá deixar de ler o sumário da síntese do quarto relatório de avaliação do IPCC (Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas), divulgado há dez dias em Valência. De suas 23 páginas, apenas metade é de texto, a outra ocupada por soturnos gráficos, figuras e tabelas ( www.ipcc.ch ).
A primeira coisa que poderá lhe incomodar é a forma utilizada para tentar transmitir ao leitor o grau de incerteza, ou de confiança, que condiciona cada afirmativa. De modo algum no tocante às margens de erro das estimativas, pois estas são intrínsecas a quaisquer avaliações do gênero. Mas sim no que se refere ao abuso de formas adverbiais - "provavelmente", "muito provavelmente", "muito improvavelmente" - ou comparativas tipo "mais provável do que improvável". Estão todas em itálicos e ocorrem 95 vezes ao longo de uma dúzia de páginas de texto.
Claro, nada disso poderá perturbar quem já esteja plenamente convencido de que são inquestionáveis os resultados das pesquisas revisadas pelo painel. Pode-se pensar, por exemplo, que não passam de 95 as manifestações de recalcitrantes resistências políticas, ou, no máximo, de 95 sinais do excessivo rigor dos 40 componentes da equipe de redação. Nesta linha, o que mais importa é tirar de tão importante documento as decorrências que deveriam nortear as conversações internacionais sobre o modo mais efetivo de combater o aquecimento global. E, para debater tal orientação, não há necessidade de se examinar mais do que duas tabelas que aparecem no final do texto: SPM.6 e SPM.7 (págs. 21 e 23).
A primeira apresenta seis cenários de elevação da temperatura média global em relação ao que deve ter sido o "equilíbrio pré-industrial", indicando os correspondentes patamares de concentração de gases estufa, medidos em equivalentes de dióxido de carbono (CO2). Escancara que o único cenário admissível é o primeiro, no qual um aumento de temperatura situado entre 2 e 2,4 graus centígrados (ºC) exigirá que a concentração seja contida no intervalo de 445 a 490 partes por milhão (ppm).
Admitir qualquer dos outros cinco cenários seria o cúmulo da irresponsabilidade. Afinal, se a temperatura global aumentar mais de 2º C, estima-se que entre 0,7 e 4,4 bilhões de pessoas sofrerão de crescente falta de água; que haverá queda de rendimentos agrícolas em muitos países pobres; que as florestas amazônicas serão irreversivelmente comprometidas; que de 15 a 40% das espécies se extinguirão; que geleiras desaparecerão; que o derretimento da placa de gelo da Groenlândia acelerará a elevação do nível do mar; e que o permafrost siberiano exalará seu imenso estoque de metano (CH4), gás-estufa bem mais furioso que o CO2.
O suficiente para mostrar a profunda incoerência dos que elogiam simultaneamente o IPCC e o Protocolo de Kyoto.
Se o IPCC estiver mesmo certo, então esse protocolo deve ser imediatamente denunciado e substituído com máxima urgência por um sério entendimento entre os 20 países que são responsáveis por 90% das emissões de carbono. Não há outra maneira de se obter uma redução das emissões superior a 50% até 2050, condição sine-qua-non da estabilização da concentração no intervalo 445-490 ppm e, portanto, de um aquecimento máximo que fique entre 2 e 2,4 ºC.
Além da fixação de metas de emissão nacionais muito mais drásticas para esses vinte principais emissores, as cotações resultantes dos chamados "mercados de carbono" precisariam aumentar, e muito. Seja mediante leilões dos direitos de emissão, ou pela adoção de impostos para cada tonelada de carbono emitida, semelhantes ao que já são pagos quando se consome um maço de cigarros, ou uma dose de bebida alcoólica. E ainda faltaria o principal: intensa cooperação científica voltada à descoberta de saídas realmente capazes de descarbonizar as matrizes energéticas.
Qual seria o custo macroeconômico desse trevo do conseqüente combate ao aquecimento global? É o que procura responder a última tabela do sumário do IPCC. Todavia, quem chegar até ela, notará que, para esse primeiro cenário, as estimativas não estão disponíveis ("not available"). Por quê? Pergunte ao IPCC. O que pode ser dito aqui é que tais custos já foram calculados por pelo menos dezenove complexos modelos, entre os quais se destacam o "Dice", de Nordhaus, e o "Page", de Stern. A principal diferença entre os dois é de natureza ética, pois depende da parcela de responsabilidade que será transferida às futuras gerações. Segundo o Nordhaus, o custo social da tonelada de carbono deveria se aproximar nos próximos anos de US$ 60. Já para Stern, esse custo deveria ser cinco vezes maior (US$ 305), já que seu pressuposto ético é de que as gerações presentes é que devem assumir a maior parte do sacrifício.
A percepção de que o aquecimento global é a maior ameaça que o mundo enfrenta avançou bastante em 2007. As outras - terrorismo, armas nucleares, Oriente Médio - até parecem bem menores. Então, é absurdo dizer que o pós-Kyoto poderá ser mero aprofundamento do protocolo, além de esperar 2013 para entrar em vigor. Tal postura só pode ser assumida por quem pretenda ganhar tempo. Por quem não queira encarar os próximos anos como momento decisivo. Talvez por ter dúvidas sobre os resultados validados pelo IPCC. E é essa a atitude da maioria dos corpos diplomáticos, aí incluído o do Brasil, país que já aparece como sexto principal emissor (caso a União Européia seja considerada em bloco na terceira posição).
Enfim, como o leitor deve ter notado desde a primeira linha deste artigo, o aquecimento global envolve sérias controvérsias, tanto do âmbito das ciências naturais, quanto no das econômicas e políticas. E é muito ruim que permaneçam subestimadas, ou mesmo ignoradas. Daí porque deve ser enfático o convite à leitura do relatório "Aquecimento global: um balanço das controvérsias", redigido em co-autoria com Petterson Vale, disponível em www.zeeli.pro.br.
José Eli da Veiga é professor titular do departamento de economia da FEA/USP e autor de "A Emergência Socioambiental" (Ed. Senac, 2007), escreve mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br
Publicado originalmente no jornal Valor Econômico do dia 27 de novembro de 2007.
...
Quem lê este blog com certa freqüência conhece minha posição (contrária) à teoria aquecimentista. Não obstante, não deixo de me interessar por posições contrárias e análises bem fundamentadas ou, se não suficientemente fundamentadas, ao menos esforçadas do ponto de vista lógico. Meu intuito foi fornecer mais subsídios a este necessário debate.
a.h
No comments:
Post a Comment