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Saturday, January 01, 2011

Nova visão de desenvolvimento rural


Valor Econômico. Terça-feira, 29 de julho de 2003  -  Ano 4  -  Nº 810  -  1º Caderno


Nova visão de desenvolvimento rural



É preciso acabar de uma vez por todas com a falsa identidade "rural igual a agropecuário", que ainda confunde muita gente

É deplorável o provincianismo que domina o debate brasileiro sobre o desenvolvimento rural. Para se dar conta, basta ler o documento elaborado por dois experientes pesquisadores da área, Alexander Schejtman e Julio Berdegué, para o Departamento de Desenvolvimento Sustentável do BID, e para a Divisão América Latina e Caribe do Fida (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola), (disponível na página www.rimisp.cl).
A mensagem essencial desse documento é que os organismos internacionais financiadores de boa parte dos esforços regionais em matéria de desenvolvimento rural devem dar exclusividade nos próximos anos a projetos que tenham sido concebidos com "enfoque territorial". Exatamente a abordagem que está ausente do debate público brasileiro, pois continua separado em arquivos do tipo "reforma agrária", "agribusiness", "pobreza rural" ou "fome". Não que falte no governo federal (e alguns estaduais), e na comunidade científica, pessoas bem informadas sobre a abordagem que há muito emplacou no âmbito internacional. O problema é que as idéias desses técnicos e pesquisadores têm sido sistematicamente marginalizadas pela desproporcional atenção que se dá à tragicomédia política armada pelo MST ao desempenho exportador dos agronegociantes, ou aos tropeços institucionais do "Fome Zero".
Segundo Schejtman e Berdegué, a pequena eficácia das políticas de desenvolvimento rural impulsionadas nos últimos trinta ou quarenta anos transmitem um inequívoco recado aos governantes, organizações internacionais, bancos de fomento, redes de extensão, sindicatos, ONGs, etc: fitar a rosa-dos-ventos e mudar de orientação (ou "evitar seguir haciendo más de do mismo"). Para tanto, é preciso acabar de uma vez por todas com a falsa identidade "rural igual a agropecuário", que ainda confunde muita gente. O fato de a agropecuária ter adquirido imensa participação nos territórios rurais durante o século passado não significa que as economias desses espaços tenham sido alguma vez monopolizadas pelo setor primário. Muito pelo contrário, nenhuma atividade mineral, florestal, pecuária, ou agrícola, alcança algum sucesso sem que estimule simultaneamente o transporte e o comércio, ramos que fazem parte do setor terciário. E é pura ignorância achar que as atividades industriais sejam exclusivamente urbanas. Há até países onde o setor secundário se localiza predominantemente em territórios rurais.
O que os autores chamam de "enfoque de Desenvolvimento Territorial Rural (DTR)" é a visão de um duplo processo de transformação - produtiva e institucional - de espaços bem determinados. A transformação produtiva deve articular a economia desses territórios a mercados dinâmicos, de forma competitiva e sustentável. A transformação institucional deve facilitar a interação e a construção de confiança entre atores locais, não somente entre si, mas também entre eles e os atores externos relevantes, com o propósito de ampliar as oportunidades participativas da população no processo e em seus benefícios. São essas as duas lições mais gerais que podem ser tiradas das duas principais experiências práticas que serviram de referência aos autores: a "Canadian Rural Partnership", e o programa da União Européia intitulado "Leader": "Ligações Entre Ações de Desenvolvimento da Economia Rural".
Além dessas duas referências básicas a países mais desenvolvidos, o documento preparado para o BID e para o Fida registra a alguns sinais de propostas parecidas que engatinham na América Latina. Principalmente na Bolívia, Colômbia, México e Brasil. E é curioso notar a importância atribuída a algumas iniciativas brasileiras com irrisória atenção doméstica. É particularmente o caso do esforço coletivo de formulação estratégica realizado em 2001/2002 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), agora desativado pelo governo Lula por exigência do MST. Há completa sintonia entre as propostas desse Plano elaborado pelo CNDRS e as principais idéias do documento de Schejtman e Berdegué.
Uma das semelhanças básicas é a tese de que qualquer política de desenvolvimento rural deverá se adaptar a quatro tipos fundamentais de territórios: a) os que avançaram na transformação produtiva e também lograram um desenvolvimento institucional que permite razoáveis graus de confiança entre os atores e inclusão social; b) os que conseguiram desencadear dinâmicas de crescimento econômico, mas com débeis impactos sobre o desenvolvimento local, por não ampliarem as oportunidades para os segmentos mais pobres; c) os que se caracterizam por robustas instituições, que costumam expressar fortes identidades culturais, mas que carecem de opções econômicas endógenas capazes de engendrar a superação da pobreza; d) os que estão em franco processo de desestruturação social e econômica.
Outra semelhança fundamental entre as duas contribuições está na importância estratégica que atribuem ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), não apenas devido às suas linhas de crédito a uma categoria de agricultores que sofreu lamentável discriminação negativa entre 1964 e 1995, mas, sobretudo por duas outras questões: a) sua ação estrutural de financiamento de infraestrutura em municípios rurais; b) sua prioridade à capacitação dos agricultores familiares e de suas organizações para que tenham mais acesso ao intercâmbio de experiências e mais acesso a conhecimentos e habilidades tecnológicas que levem à elaboração de bons planos microrregionais de desenvolvimento e a firmes articulações intermunicipais.
Todavia, mais do que as similitudes entre os dois documentos, o que realmente interessa é o aprofundamento de um intercâmbio que possa contribuir para a inovação institucional assim que o governo Lula conseguir sair dessa pasmaceira agrária a que foi condenado por ir a reboque de uma força política tão anacrônica quanto o MST. Daí a importância do painel que amanhã reunirá Julio Berdegué e Décio Zylbersztajn, coordenador do Pensa/USP, no âmbito do 41º Congresso da Sober, a Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural. Será uma oportunidade de ouro para se ter contato direto com a nova visão do desenvolvimento rural que já conquistou quase todas as organizações internacionais de fomento, mas infelizmente continua na penumbra por aqui.
José Eli da Veiga , professor titular da FEA-USP e autor de Cidades Imaginárias (Ed. Autores Associados, 2002), escreve quinzenalmente às terças-feiras. Home page: www.econ.fea.usp.br/zeeli/ 

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