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a.h

Friday, November 30, 2007

Uma ditadura consentida


A Venezuela não é uma democracia
Coluna - Sérgio Ribeiro da Costa Werlang
Valor Econômico
26/11/2007

É muito curiosa a discussão recente sobre se a Venezuela é ou não uma democracia. Por várias razões, a organização político-institucional da Venezuela não contém elementos básicos que qualificariam o país como uma democracia. Desta forma, pelo Protocolo de Uchuaia de 1998, onde impõe-se "a plena vigência das instituições democráticas" como "condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração dos Estados partes", que faz parte dos documentos que constituíram o Mercosul, hoje a Venezuela não pode ser integrante do bloco.

A palavra democracia tem diferentes acepções ao longo da história. Mais ainda, o uso indevido desta qualificação é muito comum. Por exemplo, a parte oriental da Alemanha era oficialmente denominada República Democrática Alemã. Certamente nada havia de democrática na antiga república alemã oriental, que era uma ditadura comunista.
Vários países ditatoriais têm eleições. Mas nem por isso são democracias. Em 2002, no Iraque, em plena ditadura Saddam Hussein, houve eleições diretas para presidente e o tirano foi eleito com 100% dos votos. Por outro lado, há várias monarquias modernas que são totalmente democráticas, como a Inglaterra, Espanha, Suécia, Bélgica, Dinamarca, Japão etc, embora o rei não seja eleito.
Além disso, os Estados Unidos, que são a democracia mais vibrante de nosso tempo, têm eleições indiretas para presidente: os eleitores escolhem um colégio eleitoral e, este, o presidente. Houve algumas ocasiões, como na primeira eleição de George Bush (filho), em que a maioria da população votou a favor de um candidato (Al Gore), mas o colégio eleitoral escolheu outro (George Bush). Nem por isso os norte-americanos quiseram alterar seu sistema de votação, ou se sentiram menos democratas.
A palavra democracia tem usos muito distintos. Não basta que um país autodenomine-se democrata. Não basta que haja eleições diretas para presidente. Por outro lado, muitas monarquias modernas são democracias e há democracias republicanas em que o presidente não é eleito por voto direto.
Assim, o que caracteriza uma democracia? Vai-se ver que é um certo conjunto de regras bem estabelecidas, aceitas e respeitadas por todos, que permita a alternância de poder e dê voz às minorias políticas. Mas para entender isso é útil fazer uma rápida retrospectiva histórica da democracia moderna e de suas características fundamentais.
Para que todas as idéias possam ser analisadas por aqueles que vão exercer seu voto, é fundamental que haja liberdade de expressão e de imprensa A democracia iniciou-se em algumas cidades-Estado gregas. O caso mais conhecido foi o de Atenas. Todos os cidadãos homens e livres, maiores de 18 anos, eram parte da assembléia, a instituição política mais importante. No Século IV A. C., a assembléia reunia-se quatro vezes a cada 36 dias. E, nelas, todos os membros podiam falar, propor emendas e votar. É claro, tal sistema só funcionava nas pequenas comunidades formadas pelas cidades-Estado (Finlay estima que em Atenas, por volta de 430 A. C., existiam de 40 a 45 mil pessoas que seriam integrantes da assembléia). Esta democracia direta mostrou-se incapaz de unificar a Grécia e muito pouco ágil para os tempos que estavam por vir.
Os romanos aperfeiçoaram a democracia, tornando-a representativa (os cidadãos elegem um representante periodicamente que faz o trabalho legislativo para eles). Este sistema mostrou-se muito eficaz e, com o tempo, desde o fim do primeiro reinado em 507 A. C., Roma acabou por conquistar todo o Mediterrâneo. A partir de 44 A. C., quando Júlio César foi indicado ditador vitalício, a democracia começou a perder ímpeto no mundo.
A primeira grande reviravolta aconteceu em 1215, na Inglaterra, quando João Sem Terra assinou a Carta Magna que instituiu que o rei só poderia aumentar impostos se o parlamento aprovasse. Além disso, seu artigo 29 garantiu que os homens livres não poderiam ter confiscados seus bens ou suas liberdades, nem o rei poderia baixar decreto condenando-o sem julgamento.
Mas, é claro, não é suficiente estar "na lei"! É preciso que todas as pessoas ajam e comportem-se de acordo com a lei. E, para que os preceitos da Carta Magna fossem realmente respeitados, foram necessárias duas revoluções na Inglaterra, a de Cromwell e a Revolução Gloriosa, de 1688, que pôs fim aos monarcas absolutistas ingleses. Já nesta época Locke observou a importância da independência dos poderes Legislativo e Executivo (na verdade, antes de Locke, Maquiavel também notou isto). Mais tarde, Montesquieu e Madison (este o primeiro a utilizar a expressão sistema de "pesos e contrapesos" para referir-se ao tema) divulgaram a teoria da independência dos poderes como hoje a conhecemos. A importância da independência é crítica na estabilidade das regras de qualquer democracia, como Tsebellis demonstrou mais recentemente.
Adicionalmente, para que todas as idéias possam ser analisadas por aqueles que vão exercer seu voto, é fundamental que haja liberdade de expressão e sua companheira indissociável, a liberdade de imprensa. Estes ideais foram todos introduzidos na Constituição norte-americana, de 1787, que se manteve inalterada em sua essência desde então. Por fim, regras não valem nada se o respeito às mesmas não estiver arraigado na população.
Em suma, uma democracia moderna exige: (I) eleições livres para o chefe do Executivo (que é o primeiro-ministro no caso das monarquias modernas); (II) existência de um Legislativo que também deve ser livremente eleito pela população; (III) independência do Legislativo e do Judiciário entre si e em relação ao Executivo; (IV) liberdade de expressão e de imprensa.
A Venezuela de hoje não passa pelo teste dos itens (III) e (IV). Além disso, com a mudança da Constituição que está sendo proposta (uma vez que o Executivo controla os outros poderes) e a possibilidade de reeleição permanente, as eleições para chefe do Executivo não serão livres. Definitivamente, não é uma democracia no momento, de modo que não deveria fazer parte do Mercosul.
Por último, o argumento de que deve ser membro do Mercosul pois é um parceiro comercial estratégico para o Brasil é também falho. Sua participação nas exportações brasileiras é de 2,8%, muito próxima a de Japão (2,8%), Chile (2,7%) e México (2,6%), e muito inferior à da União Européia (24,8%), Estados Unidos (15,9%), Argentina (8,9%) e China (7,0%).
Sérgio Ribeiro da Costa Werlang, diretor-executivo do Banco Itaú e professor da Escola de Pós-graduação em Economia da FGV, escreve mensalmente às segundas-feiras.

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