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a.h

Monday, February 18, 2008

Xadrez balcânico*








Tomado isoladamente, o Kosovo não tem maior relevância geopolítica. Claro que em matéria de geopolítica, os efeitos de longo alcance são os que “dizem mais”... Foi através de um ataque de dois meses conduzido pela Otan que se criou ali uma “área quente” no cenário europeu. Formalmente, a investida da aliança atlântica serviu para dissuadir a Sérvia de seus ataques contra kosovares de origem albanesa. Uma vez bem sucedida a operação, com os sérvios expulsos da província, a Otan obrigatoriamente teve que ocupá-la.

As premissas da ação da Otan eram evitar que se repetisse o ocorrido na Bósnia durante os anos 90, quando a Sérvia achincalhou com os muçulmanos da Bósnia provocando um massacre e, para evitar que estados europeus desrespeitassem normas internacionais. A idéia subjacente era respeitar um consenso que tinha nos EUA seu "líder natural". E mesmo sem o consenso da ONU, os EUA mais o apoio de alguns países europeus tomaram as rédeas da situação. Cabe lembrar, no entanto, que os massacres eram perpetrados tanto pelos sérvios contra croatas e muçulmanos quanto estes contra àqueles. Algo comum do Danúbio ao Hindu-Kush. A Iugoslávia do Pós-Guerra sempre foi um "estado artificial" separado do Ocidente por uma tênue linha mantida pelos socialistas (mas, sem a influência soviética observada na Europa Central). Internamente se constituía por três grupos religiosos predominantes, católicos, cristãos ortodoxos e muçulmanos. Devido a sua posição anti-soviética cooperava com os EUA, embora pertencesse ao bloco comunista (a Iugoslávia foi o único país da região a aceitar o incentivo do Plano Marshall).

Com o fim da Guerra Fria e a morte do ditador Tito que comandava com sua mão de ferro as repúblicas constituintes, a "federação iugoslava" também caiu. Não imediatamente, mas após dez anos de sua morte. A democracia, realmente, não funcionou na região.

A missão da Otan visava acabar com o estado multiétnico da Iugoslávia substituindo-o por uma série de pequenos estados independentes e estáveis. O problema é que a maioria desses estados balcânicos tem minorias étnicas expressivas que precisavam ser contempladas com terra e que clamavam por autonomia. Não há nos pequenos estados, grandes maiorias étnicas que permitam tal estabilidade.

Mexer nas linhas fronteiriças do Pós-Guerra tem sido uma tarefa ingrata e perigosa. Do contrário, os húngaros que vivem na Transivâlnia romena, que ainda podem se reintegrar territorialmente à Hungria, turcos do Chipre à Turquia, a Silésia ser retomada pela Alemanha e a Irlanda do Norte separar-se do Reino Unido. Quando a Otan propõe alterar o princípio que contém estes rearranjos, ela está brincando com fogo e induzindo a um efeito-cascata.

Portanto, por melhor que seja a intenção de livrar pequenos estados de um artifício geopolítico chamado "Iugoslávia" implica em mexer em linhas de fronteira historicamente sensíveis. Se o desejo sérvio de agrupar suas porções étnicas na Bósnia foi duramente rejeitado devido às suas atrocidades, deslocando as linhas traçadas ao longo do tempo, por que não outras? Quando os sérvios quiseram repetir seus ataques à Bósnia no Kosovo, os EUA e a Otan se viram na obrigação de intervir.

No entanto, não se chegou no Kosovo ao mesmo nível de atrocidades cometido na Bósnia, apesar do que quer que tenha sido dito pela administração Clinton. Chegou-se mesmo a aventar que centenas de milhares haviam sido mortos para depois se afirmar que foram 10.000, cujos corpos foram dissolvidos em ácido. As análises posteriores nunca revelaram estes números. Mas, o ponto é que no Pós-Guerra Fria, os EUA queriam evitar novos massacres e fazer uma reengenharia dos pequenos estados.

Dois meses de bombardeios sobre o Kosovo serviram para afugentar os sérvios e permitir a ocupação das tropas da Otan. Mas, a força aérea não foi tão eficaz quanto se esperava, assim como a resistência sérvia superou as expectativas. Os EUA tiveram que por termo à guerra e aí entra em cena a Rússia.

Devido à inépcia russa, os EUA iniciaram uma estratégia de isolamento sérvio e persuasão para sua retirada. O acordo consistiu na participação russa na ocupação do Kosovo, os quais caíram direitinho no engodo. O que se configurou numa espécie de traição aos sérvios com a impressão vendida de que os sérvios teriam seus interesses garantidos no Kosovo. Uma força de ocupação Otan-Rússia deveria garantir que o Kosovo permanecesse como parte integrante da Sérvia, o que se sabe, não foi concretizado.

A guerra propriamente dita terminara, mas os russos nunca foram deixados sós neste cenário. Definitivamente, fizeram papel de tolos com uma cenoura amarrada em sua frente sem nunca a alcançarem... Depois, os russos foram excluídos da composição da Força de Kosovo (KFOR) e isolados pela Otan. Quando quiseram examinar o controle do aeroporto em Pristina foram cercados por tropas da Otan.

É importante notar que a ruptura do acordo da Otan e dos EUA com a Rússia significou uma humilhação para Yeltsin, o que ajudou em parte na ascensão de Putin, ex-diretor de política externa deste governo. O empenho atual do ex-presidente Putin no governo significou, também em parte, uma reação ao estado que foi relegada à Rússia. Um país que historicamente se projetou externamente, mas que internamente sempre foi fraco não teria muitas alternativas.

E, particularmente, porque a questão do Kosovo não encontra a mesma guarida teórica dos outros separatismos: trata-se do favorecimento territorial e fronteiriço a uma minoria nacional. Em que pese ser uma maioria local (no Kosovo), no contexto mais amplo é minoria (na Sérvia). Analogamente, seria como endossar um separatismo sérvio na Bósnia também. Outro detalhe não menos importante é que, ao invés de aproveitar a deixa histórica e deixar de mexer no vespeiro, se continua o processo de reengenharia territorial, o que atenta contra os interesses russos. Não há um mandato claro da ONU sobre a questão, apenas os intentos de nações poderosas, porém isoladas como Alemanha e EUA.

O argumento utilizado por Putin, de que esta independência abre um grave precedente ao separatismo checheno, dentre outros, não se sustenta: a Chechenia está acabada. A questão é que tratar o tema com indiferença põe a Rússia em uma posição de complicada desvantagem. A Rússia pode estar se lixando para a Sérvia, mas não admite uma presença mais ostensiva da Otan na região. Esta é a questão.

A posição adotada por Putin foi similar a de um juiz que observa o desrespeito a uma de suas decisões. Além dele, a Lei está sendo desrespeitada. Tal é o caso com o qual Moscou se debate. EUA e Alemanha fazem é desdenhá-lo, o que é inadmissível.

Nesta queda de braço, até agora Moscou está desmunhecando.

Putin se empenhou em alçar a Rússia a mesma esfera de influência que teve a URSS. A Bielo-Rússia está em vias de se reintegrar, a Ucrânia está de sobre-aviso para abandonar qualquer intento de incorporar-se a Otan, o Cáucaso e a Ásia Central estão sendo reafirmados como sua hinterlândia militar, ou seja, não é uma boa hora para testar o poder do gigante das estepes.

Um Kosovo livre fora da alçada da ONU e do poder de veto russo no Conselho de Segurança significa um desafio ao poder de Moscou e uma prova psicológica de sua fraqueza, caso a situação não se reverta. Caindo uma carta, outras podem cair dentro da própria Rússia.

O que é um jogo com possíveis perdas para a aliança atlântica é um jogo de vale-tudo para Moscou. O gás natural que flui para a Alemanha pode ser embargado. Mesmo que parcialmente, isto criaria uma grande crise. Pouco provável, mas isto implicaria em um alto custo aos alemães provando a importância da questão aos russos. Talvez os objetivos de longo alcance sejam estes mesmos, com Moscou levando a melhor num primeiro momento. Posteriormente, seu gás pode ser substituído pelos hidrocarbonetos provenientes do Iraque, parcialmente controlados pelos EUA, o que daria um input significativo a ocupação daquele país no coração do Oriente Médio.

Uma segunda opção é o que chamaríamos de "militarismo light". Suponhamos que Moscou envie para Belgrado, um batalhão ou duas tropas via aérea e depois as mandasse por terra até Pristina. E, para completar, uma esquadra naval pelo Mediterrâneo... Isto não é suficiente para fazer frente às tropas da Otan, mas o que os alemães poderiam fazer contra?

Mesmo que a Rússia não logre retomar o Kosovo para os sérvios ou o retorno à situação original em 1999, uma movimentação assim já seria suficiente para "dar um troco" e ameaçar a reintegração territorial dos estados bálticos. O que a Otan poderia fazer para se opor?

A aventura ocidental nos Bálcãs estaria partindo da premissa que não há um preço (alto) a pagar? Ou a Otan e seus aliados têm algum coringa na manga? A questão no momento é qual o risco visível e substancial envolvido na independência do Kosovo? Sinceramente, o Kosovo não tem lá grande valor, econômico ou mesmo estratégico, mas por a Rússia de joelhos convida Moscou a tentar capitalizar com alguma reação, algum ganho político, como, aliás, já se vem fazendo com outros assuntos há um bom tempo. Neste imbróglio, como ficará a delicada situação da Polônia entre forças opostas e, por extensão, de toda Europa Oriental?

Os alemães não têm cacife para peitar os russos. Não, por enquanto... Os americanos estão focados, como não poderia deixar de ser, no Oriente Médio e nas bordas do mundo islâmico. Para a Rússia, o Ocidente está em dívida com ela desde 1999 devido à traição de princípios e acordos estabelecidos. Por outro lado, uma dura oposição de Moscou levaria a uma, nada interessante, aproximação e fusão de interesses entre Berlim e Washington.

O Ocidente deveria repensar sua posição, mas com a declaração unilateral de independência kosovar, não adianta chorar sobre leite derramado. Uma crise foi deflagrada porque Washington não tem o tema como de grande importância, enquanto que para Moscou é uma oportunidade estratégica. Esta assimetria de percepções é um perfeito caldo de cultura para tensões entre Leste e Oeste. Mais uma vez...





* Traduzido e adaptado de George Friedman. The Asymmetry of Perceptions (just perfect…). http://execoutcomes.wordpress.com/. Acessado em 23 de março de 2008.

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