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A realidade histórica brasileira demonstrou (...) a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar. Pode conjeturar-se, em alargamento da tese, que fora do núcleo anglo-saxão, da França talvez, o mundo deste século, periférico à constelação mais ardente, desenvolveu curso excêntrico, que se chamaria, nas suas vertentes opostas, por deficiência de língua da ciência política, paracapitalista e anticapitalista, alternativas rebeldes à imagem modernizante. Não haveria no universo, ao contrario do que supôs Tawney, apenas uma paralisia, a ibérica, senão muitas, sem a passividade dos membros, mas agitadas, convulsas, desesperadas. A um corpo renovador, expansivo e criador, se agregam, com convivência relutante, nações modernizadoras, em constante adaptação, mas dentro de projeções de seu próprio passado, de sua história, lançada em outro rumo. Característico principal, o de maior relevância econômica e cultural, será a do predomínio, junto ao foco superior de poder, do quadro administrativo, o estamento que, de aristocrático, se burocratiza (...) progressivamente, em mudança de acomodação e não estrutural. O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado-maior de comando do chefe, junto à casa real, que se estende sobre o largo território, subordinando muitas unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia dispersa assume caráter patriarcal, identificável no mando do fazendeiro, do senhor de engenho e nos coronéis. Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público e o privado, que, com o aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal. O caminho burocrático do estamento, em passos entremeados de compromissos e transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças. O patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercantilismo como a técnica de operação da economia. Daí se arma o capitalismo político, ou capitalismo politicamente orientado, não calculável nas suas operações, em terminologia adotada no curso deste trabalho. A compatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro tradicional, equivocadamente identificado ao pré-capitalismo, é uma das chaves da compreensão do fenômeno histórico português-brasileiro, ao longo de muitos séculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial, centrado em mercados condutores, numa pressão de fora para dentro. Ao contrário, o mercado feudal, fechado por essência, não resiste ao impacto, quebrando-se internamente, para se satelitizar, desfigurado ao sistema solar do moderno capitalismo. Capaz de comerciar, exportando e importando, ele adquire feição especulativa mesmo nas suas expressões nominalmente industriais, forçando a centralização do comando econômico num quadro dirigente. Enquanto o sistema feudal separa-se do capitalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia.
Raymundo Faoro. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 8a ed. São Paulo: Globo, 1989, pp. 736-737.
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