*Tradução e adaptação de The Russo-Georgian War and the Balance of Power Stratfor
...
A invasão russa da Geórgia ainda não mudou, substancialmente, a balança de poder na Eurásia. A ação americana no Iraque ou no Afeganistão, bem como a instabilidade no Paquistão permanecem as mesmas. Os americanos não auferiram nenhum poder a mais para influenciar no território da ex-União Soviética ou manter forças reservas terrestres para interferir no Cáucaso. De um ponto de vista exclusivo a partir de Washington, os americanos não ganharam muito no Cáucaso, mas podem perder.
Retomemos os eventos: dia 7 de agosto, forças georgianas fizeram incursão sobre a região separatista da Ossétia do Sul, que mantinha um status autônomo desde o fim da URSS. Sua capital, Tskhinvali foi ocupada. Na manhã seguinte, blindados e infantaria motorizada russas apoiadas pela força aérea invadiram o território georgiano na Ossétia do Sul. Informalmente, esta região se alinhou a Rússia que operou para anular sua incorporação à Geórgia. Dada a velocidade da operação que, em questão de poucas horas, levou a reação russa, está claro que os russos já sabiam das intenções de Tbilisi. O contra-ataque, cuidadosamente planejado que forçou a retirada georgiana levou apenas dois dias. No domingo, dia 10, os russos já logravam consolidar sua posição de ocupação na Ossétia do Sul (veja o mapa ao lado). No dia seguinte, os russos atacaram forças georgianas como se fossem dois machados. Um deles em direção a cidade georgiana de Gori ao sul, o outro em direção a Abkhazia, região separatista da Geórgia alinhada com os russos. O objetivo foi cortar a ligação da capital georgiana, Tbilisi com os portos do país. A partir daí, os russos bombardearam as bases aéreas de Marneuli e Vaziani. Seu posicionamento, a cerca de 60 quilômetros da capital georgiana tornou, praticamente impossível seu reabastecimento de Tbilisi.
O porquê da invasão georgiana
O ponto de partida de nossa indagação é qual o objetivo da invasão da Ossétia do Sul pela Geórgia na noite de quinta-feira? Após três noites precedentes de vigília osseta em vilas georgianas houve a troca da artilharia. Os georgianos, como é seu caráter, lutaram e resistiram, sob o claro intento de levar a ação da Geórgia para frente. Os EUA são os aliados mais próximos do país. Cerca de 130 conselheiros militares americanos e mais outros civis assessoravam o governo georgiano e empresários com os quais negociavam. Desta forma, torna-se inconcebível que os EUA não soubessem dos planos de Tbilisi. A inteligência americana, seus satélites e aviões espiões teleguiados também deveriam estar monitorando a movimentação de tropas russas. Estamos falando de milhares de soldados russos se deslocando em direção ao sul. Os russos sabiam claramente que os georgianos iriam contra-atacar. Como então, os americanos não poderiam saber igualmente dos russos? Da mesma forma, os americanos deveriam saber que a ação georgiana era o pretexto ideal para Moscou invadir e expulsar as forças da Geórgia. Se os georgianos se apoiavam nos americanos (e confiavam neles), não poderiam meter os pés pelas mãos e traçar uma estratégia que prejudicasse suas negociações regionais indo contra seus próprios interesses. Uma hipótese é que houve uma avaria na inteligência americana ou um péssimo calculo do poder de contra-ataque russo. Difícil crer que sua análise se baseasse no histórico da década de 90 quando o exército russo estava uma verdadeira bagunça e seu governo paralisado. Com a insuflação do separatismo nas regiões georgianos, os russos prepararam uma arapuca na qual os patos georgianos caíram direitinho.
Outro episódio em que os russos tomaram a dianteira foi na movimentação em território afegão nos anos 70 e 80, quando os EUA se viram forçados a buscar reforços e apoio nos guerrilheiros muhajedin de base ideológica talebã. E isto que os russos evitaram estes movimentos por anos... Ao contrário dos EUA, a Rússia não viu nenhum obstáculo militar. Economicamente, Moscou sabe muito bem de sua importância da exportação de seu gás para a Europa. Politicamente, os americanos necessitam dos russos, mais do que os russos necessitam dos americanos. O momento era ideal e o golpe, preciso.
O cerco ocidental a Rússia
Há alguns precedentes que explicam a motivação russa. Do ponto de vista ocidental e, americano em particular, a Revolução Laranja na Ucrânia (novembro de 2004), que levou um líder pró-ocidental ao poder, Viktor Yushenko, representou uma vitória da democracia. Para os russos, por sua vez, esta “revolução” era uma intrusão apoiada pela CIA para trazer a Ucrânia a esfera de influência ocidental e americana, leia-se Otan. O pai de George W. Bush – George H. W. Bush – e Bill Clinton prometeram que a Otan não se expandiria para os limites do ex-território soviético. A promessa fora quebrada em 1998 com a incorporação da Polônia, República Tcheca e Hungria ao seu sistema de defesa. Novamente, em 2004, não se contentando com a Europa Central, a Otan incorporou outras três ex-repúblicas soviéticas no Báltico, Lituânia, Letônia e Estônia. Os russos toleraram tudo isto até que chegou a vez da Ucrânia, cuja entrada no “guarda-chuvas” da Otan representou uma ameaça a sua segurança nacional. Se consumada sua entrada na Otan, a Federação Russa ficaria desestabilizada e indefensável. Quando, por fim, tentaram incorporar a Geórgia, a influência russa no Cáucaso seria, por fim, extirpada. A conclusão óbvia era que os EUA iriam partir a Federação Russa em diversos movimentos separatistas, descosendo-a como se rasgassem um velho cobertor cheio de remendos. Lembremos ainda que, pouco antes, Europa e EUA apoiaram a independência do Kosovo em relação a Sérvia. Os sérvios, antigos aliados dos russos não eram o problema, mas para Moscou desde o fim da II Guerra era condição de estabilidade que as áreas de influência não fossem alteradas. Com este princípio violado, outras regiões, dentro da própria Rússia poderiam seguir o exemplo. Os russos solicitaram que este status não fosse alterado, mesmo porque o Kosovo já tinha uma autonomia informal que equivalia, na prática, a esta nova independência formal. A Rússia foi simplesmente ignorada.
Desde o ocorrido na Ucrânia, os russos já concluíam que os EUA estavam cercando-os ostensivamente e estrangulando seu país em pontos estratégicos. Mesmo em episódios de menor importância estratégica – como foi o caso do Kosovo –, EUA e Europa não levaram a Rússia em consideração uma só vez. Chegara o limite para a ruptura. Se mesmo em um caso de pequeno significado regional (política e economicamente falando), a Rússia não tinha qualquer peso, para Moscou, o Ocidente já lhe declarara guerra. Para os russos não se tratava mais de entender o porquê disto tudo, mas sim em como responder a isto tudo. Se o Kosovo podia ser declarado como independente sob patrocínio ocidental, a Abkhazia e Ossétia do Sul também poderiam ter suas independências patrocinadas pela Rússia. Tratava-se apenas de jogar com as cartas que se dispunha. E os russos jogaram com quase todas.
Para os russos foi uma vitória moral: ao protestarem, EUA e Europa se revelariam hipócritas, pois negavam à Abkhazia e Ossétia do Sul, o mesmo que defenderam para o Kosovo. Por razões políticas internas a Rússia, o fato era importantíssimo. Se para o ministro Putin, a queda da URSS fora um desastre, isto não significava que quisesse retomá-la nos mesmos moldes de antigamente, mas que a segurança nacional estava, a partir de então, em uma rota perigosamente descendente. Uma rota de insegurança patrocinada pelo Ocidente. Urgia, para ele, retomar a influência russa nos territórios da extinta União Soviética.
Consideremos o seguinte: durante a Guerra Fria, São Petersburgo estava 1.930 km distante de qualquer país da Otan. Hoje está apenas 96,5 km distante da Estônia, um membro desta organização militar. A desintegração soviética deixou a Rússia cercada por países hostis ao seu antigo domínio e influenciados por americanos, europeus e, em alguns casos, pela China.[1]
A ressurreição da esfera russa
Putin não quis restabelecer a URSS, mas quis restabelecer a hegemonia russa dentro do ex-território soviético. Para tanto, ele teve que implementar as seguintes tarefas:
1) Reconstruir o exército russo e restabelecer seu crédito como força de peso regional.
2) Anular a influência da Otan no contexto regional da periferia russa.
Sua intenção não era o confronto direto com a Otan (mesmo porque, provavelmente, perderia), mas ter o poder de derrotar ou dissuadir qualquer país alinhado com a organização em sua periferia. Cabia a ele anular qualquer intento de ativar o Dispositivo Automático de Entrada (D.A.E.) que permite aos EUA avançar sobre território de outro país a partir de seus aliados regionais. Como demonstração de força neste sentido, a Geórgia foi a escolha perfeita para sua demonstração de força e coragem. “Coragem”, não contra a Geórgia, pois daí já seria covardia, mas em desafio a Otan mesmo, o que fez de modo competente.
O que Putin também revelou era o sabido de todos, mas não demonstrado empiricamente: como os EUA se acham atrelados a suas ações no Oriente Médio não poderiam oferecer muitas garantias no Cáucaso, ou em qualquer outra parte do globo.
No cômputo da operação até o momento, uma lição para ucranianos, georgianos, bálticos, europeus e centro-asiáticos digerirem, serviu como bônus. Especialmente, para a Polônia e República Tcheca.
Para o Kremlin, a defesa de mísseis balísticos que os EUA querem introduzir nestes países é uma ameaça clara a Rússia. Com o ataque a Geórgia, Putin e Medvedev querem demonstrar que as promessas e garantias dos americanos são vazias. Para os EUA, o Oriente Médio e, particularmente, o Irã lhe tomam muito mais atenção em detrimento do distante e inóspito Cáucaso. E os americanos querem a aliança russa contra o Irã, particularmente, não lhes vendendo armamento, como o eficaz sistema de defesa aérea S-300. Se os russos quiserem mesmo importunar os EUA, poderão vender armas não somente ao Irã, mas também a Síria.
O dilema americano consiste em priorizar o Cáucaso agora e deixar o Oriente Médio (o que parece fora de questão) ou limitar sua ação na Geórgia para evitar uma aliança russo-iraniana. Apesar dos interesses russos confluírem aos dos EUA na questão iraniana – o sistema de armas iraniano é mais ameaçador para a Rússia do que para os EUA considerando seu território mais próximo... O mesmo podendo se dizer sobre o Afeganistão, um acirramento do conflito no Cáucaso com maior ingerência americana pode alterar a situação para um quadro diametralmente oposto: uma aliança russa com o Irã e rebeldes afegãos contra os EUA.
Os ventos atuais são, aparentemente, favoráveis a Moscou. Seus coringas estão no fato de que:
O que Putin também revelou era o sabido de todos, mas não demonstrado empiricamente: como os EUA se acham atrelados a suas ações no Oriente Médio não poderiam oferecer muitas garantias no Cáucaso, ou em qualquer outra parte do globo.
No cômputo da operação até o momento, uma lição para ucranianos, georgianos, bálticos, europeus e centro-asiáticos digerirem, serviu como bônus. Especialmente, para a Polônia e República Tcheca.
Para o Kremlin, a defesa de mísseis balísticos que os EUA querem introduzir nestes países é uma ameaça clara a Rússia. Com o ataque a Geórgia, Putin e Medvedev querem demonstrar que as promessas e garantias dos americanos são vazias. Para os EUA, o Oriente Médio e, particularmente, o Irã lhe tomam muito mais atenção em detrimento do distante e inóspito Cáucaso. E os americanos querem a aliança russa contra o Irã, particularmente, não lhes vendendo armamento, como o eficaz sistema de defesa aérea S-300. Se os russos quiserem mesmo importunar os EUA, poderão vender armas não somente ao Irã, mas também a Síria.
O dilema americano consiste em priorizar o Cáucaso agora e deixar o Oriente Médio (o que parece fora de questão) ou limitar sua ação na Geórgia para evitar uma aliança russo-iraniana. Apesar dos interesses russos confluírem aos dos EUA na questão iraniana – o sistema de armas iraniano é mais ameaçador para a Rússia do que para os EUA considerando seu território mais próximo... O mesmo podendo se dizer sobre o Afeganistão, um acirramento do conflito no Cáucaso com maior ingerência americana pode alterar a situação para um quadro diametralmente oposto: uma aliança russa com o Irã e rebeldes afegãos contra os EUA.
Os ventos atuais são, aparentemente, favoráveis a Moscou. Seus coringas estão no fato de que:
1) Os russos apóiam os americanos (por enquanto...) em regiões críticas como o Afeganistão e Irã (próximos de suas fronteiras).
2) Os europeus dependem de seu fornecimento de gás e padecem com o déficit de forças expedicionárias.
Apesar de não ser uma potência mundial como os EUA, a Rússia é uma inegável força regional com reservas de armas nucleares e uma economia em ascensão, embora muito dependente de seus recursos naturais. Estes simples fatos compelem seus vizinhos a reavaliarem seus posicionamentos políticos em relação a Moscou.
No caso da Geórgia, provavelmente os russos exigirão a renúncia do presidente, Mikhail Saakashvili. Isto é o que querem e para isto estão se movimentando. Em uma escala mais ampla, a Rússia tem dado demonstrações de requerer o retorno ao status de grande potência. Em uma favorável combinação de fatores e eventos de médio prazo: o retorno do investimento e organização militares sob os governos de Vladimir Putin e, os gastos e envolvimento americanos no Oriente Médio ajudaram a consolidar o crescimento do poder russo. Uma “janela de oportunidade” se abriu para Moscou e o Kremlin a atravessou. Enquanto os americanos estiverem atrelados a sua geopolítica no Oriente Médio, a Rússia tenderá a crescer regionalmente. A guerra na Geórgia não foi uma surpresa, foi preparada por meses. Se as fundações geopolíticas que datam de 1992 fossem suficientes para deter o curso histórico de séculos em que a Rússia se sedimentou como poder imperial, não teríamos este conflito. Talvez, os últimos 15 anos tenham sido uma “aberração histórica” para o leste europeu. Se a retificação para um “eterno retorno” do Império Russo devesse ocorrer, ela está ocorrendo justamente agora.
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