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O risco de "apagão", o gás boliviano e as usinas nucleares
Rio, 20/jun/05 – Qualquer observador atento a questões estratégicas pôde perceber quão pouco confortável se revela o cenário energético nacional, quando vislumbrado a médio prazo, graças a uma conjugação de eventos independentes e simultâneos e que muitos atribuiriam à famosa lei de Murphy. Trata-se da crise política na Bolívia, cujo desfecho pode representar um risco potencial ao abastecimento de gás ao Brasil, e a queda de duas das três linhas de transmissão em corrente alternada da hidrelétrica de Itaipu devido a fortes ventos, o que obrigou a usina a reduzir sua geração em 3 mil MW.
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O problema mais imediato causado pela queda das linhas de Itaipu levou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a suspender todas as paradas programadas para a manutenção de diversas hidrelétricas e, mais importante, ordenou que as usinas nucleares de Angra 1 e 2 operassem a plena carga, ou seja, 1.935 MW, para garantir a estabilidade do sistema interligado da região Sudeste. As estimativas iniciais são de que uma das linhas de Itaipu volte a operar somente no fim deste mês e a outra no início de julho. [1]
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Atualmente, as hidrelétricas são responsáveis por cerca de 81% da capacidade instalada para a geração de eletricidade no País e, como já analisado por este Alerta, mesmo que nosso potencial hídrico ainda não utilizado esteja longe de ser atingido, ele se encontra praticamente na região Norte – ou seja, distante dos grandes centros consumidores -, e o sistema interligado necessita de outras fontes geradoras - térmicas, no caso brasileiro - para assegurar sua estabilidade e otimização. Como mostra a conjugação de fatores acima mencionada, a geração nucleoelétrica desponta como a mais indicada não somente por possuirmos autonomia com relação à fonte – urânio que temos em abundância e domínio do ciclo de seu enriquecimento -, como também por ser crucial para a capacitação estratégica do País para a inevitável utilização da fusão nuclear como fonte energética primordial da humanidade quiçá ainda no presente século. Em suma, a retomada da construção da usina nucleoelétrica de Angra 3 torna-se imprescindível à segurança e soberania energética do País.
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Para tornar ainda mais incerto o quadro da geração de eletricidade em nosso país, entraves burocráticos e ambientais estão postergando a construção de novas hidrelétricas (ver nota abaixo). Por exemplo, das 27 concessões autorizadas entre 2000 e 2001 para a construção de novas usinas hidrelétricas (que demorariam quatro anos para ficar prontas), nenhuma saiu ainda do papel. Sem mais energia hidrelétrica, a partir de 2006 o aumento do consumo deveria ser coberto pela geração das termelétricas, que dependem de gás para operar; além de o abastecimento de gás boliviano estar em xeque, há consenso de que os preços vão subir devido ao aumento de tributação no país vizinho e pela tendência natural de alta do petróleo.
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Igualmente, se é verdade que o Brasil tem hoje sobra de energia, decorrente do aumento da capacidade de geração ou do menor consumo registrados entre 2001 e 2003, este excedente se esvanecerá rapidamente se a economia crescer em média 4,2% ao ano. Por enquanto, estão confirmadas obras que garantem a ampliação da geração de energia dos atuais 50 GW médios para 54 GW médios mas, no cenário de crescimento de 4,2% ao ano, o país deveria chegar a 2009 com 59 GW médios de potência, ou seja, com um déficit de 5 GW médios, levando o país correr o risco de sacrificar crescimento econômico em razão de suas deficiências estruturais. [2]
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Em outra vertente, estudos indicam que os países sul-americanos que podem sofrer problemas com o abastecimento de gás devido à crise boliviana. Por isso mesmo, a questão energética e os problemas na Bolívia foram os principais temas discutidos paralelamente às reuniões que antecedem a cúpula de chefes de Estado do Mercosul a ser realizada hoje em Assunção, no Paraguai. Uma das soluções propostas para o contingenciamento desta eventual crise energética no sub-continente é a construção do chamado anel energético sul-americano. A idéia é construir um gasoduto de 1.200 quilômetros, do Peru ao norte chileno, que se interligaria com tubulações já existentes para permitir que Brasil, Argentina, Uruguai e Chile possam ser abastecidos pelo gás proveniente da área peruana de Camisea. Segundo o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Enrique Iglesias, a entidade está "muito interessada" no projeto e pretende dar assistência financeira e técnica para que ele possa ser viabilizado. O custo estimado é de US$ 2,5 bilhões.
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O ministro de Relações Exteriores peruano, Manuel Rodríguez Cuadros, disse que o projeto não exclui a Bolívia e qualificou a construção do anel energético como a iniciativa mais importante sugerida até agora para a integração dos países sul-americanos. "Pode ser uma espécie de comunidade do carvão e do aço (em referência à organização que foi o embrião da União Européia) e a obra mais importante de coordenação econômica já feita entre os países da América do Sul", disse Cuadros. Para Cuadros, "a Bolívia é o principal produtor de gás da região e sua participação no projeto é indispensável. O Peru tem um acordo com a Bolívia para que o gás do país possa sair por um porto peruano e consideramos que o projeto de interconexão dos gasodutos tem de ser feito de acordo com os convênios existentes", disse o chanceler. [3]
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Com relação ao gás boliviano, algumas outras considerações de ordem técnica devem ser consideradas. O transporte oceânico de gás natural exige plantas bilionárias para sua liquidificação na ponta vendedora (reduzido a 170ºC negativos, o gás natural se liquefaz e ocupa 600 vezes menos volume) e, na ponta do comprador, portos cuidadosamente adaptados e plantas de regaseificação igualmente caras, além de navios especiais para seu transporte. Segundo um relatório da Administração de Informação sobre Energia dos EUA, existem apenas 206 deles em todo o mundo. [4]
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É certo que o Brasil ficou mais dependente do gás natural: só a indústria paulista consome 10 milhões de metros cúbicos diários e a conversão dos últimos anos incluiu boa parte da frota de táxis e ônibus, aquecedores e fogões domésticos nas grandes capitais. Mesmo com a promissora reserva de gás natural descoberta no litoral de Santos, que diz-se ser gigantesca, seriam necessários pelo menos cinco anos a partir da decisão da Petrobras de explorá-la para viabilizar seu uso em larga escala. Neste ínterim, o Brasil dependerá do gás boliviano e este, como vimos acima, só poderá contar com o Brasil como grande comprador. Por isso mesmo é importante que o Brasil continue a ajudar o país vizinho a implantar sua indústria de gás natural, independentemente dos eventuais riscos em seu fornecimento, em nome, inclusive, da dívida histórica que possuímos com a Bolívia.
[050620a]
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http://www.alerta.inf.br/06_2005/050620a.htm
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[1] "Angra 1 e Angra 2 operam a todo vapor para garantir sistema", O Globo, 16/06/05.
[2] "Crise do gás aumenta o risco de "apagão", Folha de São Paulo, 12/06/05.
[3] "Anel energético pode ter ajuda financeira do BID", Valor, 20/06/05.
[4] "Gás une e desune Brasil e Bolívia", Nomínimo, 20/06/05.
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Só não entendi essa conversa de "dívida histórica com a Bolívia"... do jeito que a coisa vai, quem vai ter dívida são eles conosco!
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